quinta-feira, 30 de dezembro de 2010

Maré escura - parte 4

“Eu não tenho um nome, e se tive não me lembro.” Para qualquer observador passando por aquelas ruas próximas à Praça do Cristal, o rapaz estava falando com uma das sacolas no riquixá que puxava.

“Sim, mas o taverneiro devia te chamar de alguma coisa...” respondeu a sacola, num tom discreto. O sol ainda não tinha raiado mas já não se viam mais estrelas, e o céu começava a adquirir aquele estranho tom lilás do amanhecer.

“Coisa... E também moleque, escravo, inútil, você. Dependia muito do humor dele.” Um comerciante acompanhado por um pequeno grupo de carregadores cruzou o caminho do jovem com o riquixá. Houve um silêncio, e o rapaz sem nome, que sempre teve perspicácia de sobra, respeitou a mudez de seu novo amo. Galba conversava com ele como se ele fosse gente, um comportamento que ele só esperava dos bêbados e da filha do taverneiro – mas a surra na manhã seguinte e as latrinas durante o resto do inverno garantiram que ele nunca mais pensasse em olhar para a moça. E além disso, ele era um rapaz curioso. Andar pela cidade carregando um velho contador de histórias que se esconde em sua bagagem era uma verdadeira aventura comparada com o resto da vida de escravo.

“Mas isso não pode continuar assim... Temos que lhe dar um nome. Do que eu vou lhe chamar?”

“Do que o senhor quiser, mesmo que eu tivesse um nome. Para isso você me comprou, não?”

Apesar de não haver mais ninguém ali naquele momento, a sacola fez outro silêncio. O jovem aproveitava para admirar a cidade, coisa que raramente podia fazer. Olhava para os telhados de palha e as paredes robustas das casas modestas, para exterior de mármore dos andares mais altos das casas ricas, as pedras quadradas pavimentando as ruas, o topo das quatro torres dominando o horizonte, as pessoas que passavam, os ratos entrando pelos escoadouros conforme ele se aproximava, e a cidade toda recobrando as cores com a luz do sol. Algum tempo depois, a sacola voltou a falar.

“Diga-me o que está vendo agora, e eu lhe darei isto como nome.”

“Peço que não senhor. Estava olhando agora mesmo para uma mancha enorme de bosta de pássaro.”

“Mm... justo. Seria trágico receber um nome a esta altura da vida e ser chamado de Bosta.” O jovem sorriu. Conseguia sorrir das pequenas graças da vida mesmo sendo um escravo. “Que tal palha?” respondeu.

“Não tão ruim quanto bosta, mas ainda é um nome fraco, não acha?”

“Um nome não torna ninguém fraco, senhor.”

“Ei, ei. Você é puxador de carroça, e eu sou o contador de histórias. E nas histórias, o nome é tão importante quanto os feitos. Como você espera que eu entre numa taverna e conte a história de quando eu fugi de Gigalópolis acompanhado de Palha, o puxador de carroças?”

O riquixá parou. Galba ajeitou o couro da sacola para poder olhar por um pequeno furo. “Armaduras”, disse o rapaz, diminuindo a força na voz, perdido entre o que via e o que tinha acabado de ouvir. “Eu vejo armaduras brancas, senhor.”
Um destacamento da guarda branca passava por ali. Seus enormes escudos de madeira clara formando uma parede, enquanto um oficial vinha à frente, gritando várias vezes a mesma mensagem “...seus idosos para um censo na Torre Branca. Ordens da Tetrarquia. Levem seus idosos...”. Os soldados das pontas das filas quebravam a formação para bater de porta em porta e apressar as pessoas. Ninguém entendia muito o motivo, mas estavam tão acostumados com os caprichos dos tetrarcas que se apressavam para cumprir a ordem. Pelo menos era melhor do que novos tributos.

O jovem escravo puxou o riquixá para perto de uma parede e esperou que a guarda passasse. Um dos guardas, estranhando o riquixá sem passageiros, perguntou-lhe onde estava o dono daquelas bagagens, cutucando-as com o cabo da lança.

“Vai descer para o solo. Me mandou buscar suas coisas na taverna e levar para o barcal.”

O guarda sabia que havia algo errado. Pessoas normais gaguejam e transpiram quando falam com autoridades justamente porque sabem que não estão escondendo nada, e que isso não fará a menor diferença se eles desagradarem a autoridade. Aquele garoto estava seguro demais da própria resposta. Era maltrapilho demais para ser um carregador contratado, portando devia ser um escravo.

“Bem, vá direto para lá então... Espero que seu amo não tenha cabelos brancos.”

O guarda deu mais um cutucão nas bagagens, a tropa passou e ele foi se juntar aos companheiros. O rapaz seguiu seu caminho, engolindo um nervosismo intenso que quase o fez chorar. Quando virou uma esquina e se viu numa rua deserta novamente, esbravejou “você vai matar nós dois!”

“Eu estou bem, obrigado por perguntar. Minha coxa já enfrentou pancadas piores... Dadas por mulheres inclusive. E se o perigo era tão grande, porque você não me entregou?” O rapaz ficou em silêncio. “Escute, tem um buraco aqui. Posso ver que a rua está vazia. Responda.”

“Eu não sei.”

“Você mentiu para a guarda branca e está levando um velho, aliás, o velho que eles estão procurando, para o barcal. Eu estou dentro de um saco e sou velho demais para qualquer combater até mesmo você. Por que você não me entregou?”

“Eu não sei, já disse que não sei. Eu só não quero voltar para lá.”

“Mm... Duras. É um bom nome.”

“O que?”

“Seu nome. Você viu armaduras. Não gosto de nomes grandes, e não acho que deva chamar você de Arma. Duras então. Você será Duras. Sem dúvida, tem uma cabeça dura, e oca, para mentir assim para a guarda branca.”

“Você está louco?”

“Por que? Prefere voltar ao bosta?”

Talvez tenha sido o nervoso. Talvez o velho soasse mesmo engraçado. Mas o jovem riu. Duras riu e continuou a puxar o riquixá.

A viagem continuou sem grandes surpresas. O jovem tentava se acostumar com a ideia do próprio nome, sempre distraído pelas pessoas que agora andavam em grande quantidade pelas ruas. Uma jóia aqui, uma senhora gorda ali, o cheiro das comidas nos tabuleiros dos vendedores. Gigalópolis era, sem surpresas, imensa. A religião do império, baseada nas obscuras profecias de Diros e um punhado de santos sábios que vieram depois dele, previam uma grande destruição com a chegada da maré escura, o que poderia acontecer a qualquer momento. E como a Cidade dos Céus foi o presente de Diros para salvar o povo, boa parte dos habitantes do império passava a vida tentando morar lá ou, pelo menos, garantir o envio dos filhos.

Tão logo a superfície da cidade estava ocupada, os melhores engenheiros da tetrarquia projetaram os pavilhões subterrâneos, e os trabalhadores se puseram a cavar. Três, no total. Metade desses pavilhões é ocupada por complexas redes de canos, bombas e reservatórios de água, fornalhas, caibros que transferem o movimento dos moinhos de vento para onde quer que se precise deste movimento, e os imensos terrários - as plantações cultivadas em imensas janelas cavadas nas laterais da rocha. A outra metade dos pavilhões tem gente. Muita gente. Muito mais do que se planejou e muito mais do que se pode gerenciar com a precisão que a Tetrarquia afirma governar. Um labirinto sem fim de corredores e cubículos, escadarias, túneis e salões, sempre escuros, sempre cheios de gente.

Mas assim como os exércitos que conquistaram o império precisavam descer, toda essa gente também precisava subir. No continente todo, apenas um lago é grande o bastante para que a cidade pouse sobre ele e permita que as pessoas subam e desçam em quantidade e sem perigos. O mar também é uma alternativa, mas a Tetrarquia raramente pousa a Cidade dos Céus, já que isto anula sua maior vantagem, a fortaleza inatacável.

Portanto, apesar do império ter começado sua expansão com os raros pousos de Gigalópolis, os habitantes da Torre Verde conceberam uma solução muito mais elegante e funcional. Através dos ensinamentos de Diros e das propriedades fantásticas do Cristal, os sábios do império descobriram como transferir parte do encantamento que faz a cidade voar para engenhosas embarcações, baseadas no conhecimento naval que haviam adquirido com os povos conquistados no litoral. O primeiro modelo construído, comprido e esguio, com seis velas de pano distribuídas em três pares nas laterais, foi batizado de libélula porque lembrava um inseto gigante com seis asas. Conforme o império cresceu, o número, a variedade e o tamanho dessas embarcações acompanhou o ritmo.

No extremo sul de Gigalópolis, um imenso banco de areia fina é usado para pousar as embarcações voadoras. Ali chegam e saem, todos os dias, produtos e pessoas das regiões mais distantes do império. O milho, o linho, os minérios, os trabalhadores e os escravos.

Foi nessa região, conhecida como barcal, que o jovem Duras chegou puxando um riquixá sem ninguém, apenas sacolas. Levantou a cabeça, como que tentando ouvir algo, e mudou de direção, entrando em um beco.

“A, com é bom esticar as pernas.” Galba ainda mancava, provavelmente por causa da lança do soldado. “A sacola verde, por favor.”

Duras ficou dividido entre ajudar seu novo amo e vigiar a rua. Mesmo daquela distância, podia ver grupos de homens idosos, todos com seus cabelos brancos, quando tinham algum, escoltados por soldados em direção à Praça do Cristal. Alguns pareciam revoltados, especialmente os mais ricos, a julgar pelas roupas e adereços. Mas a frieza dos guardas não abria concessões à posição social de ninguém.

“Quer me dizer como você pretende sair daqui? Nem mesmo os nobres estão passando pela guarda.”

“Eles estão procurando um velho... Talvez até já saibam que o velho tem um escravo.” Abriu a maleta e sacou dela uma garrafinha com um líquido oleoso e negro como a noite. “Agora me passe aquela navalha ali, meu sobrinho?”

segunda-feira, 6 de dezembro de 2010

Maré Escura - Parte 3

Em algum canto escuro de cada governo existe uma masmorra, porque as masmorras são um item necessário para quem governa. As vezes elas são sutis e não possuem nem mesmo paredes, mas elas têm que existir. É preciso guardar aqueles que enxergam os defeitos do mundo em algum lugar seguro.

Gigalópolis, a cidade dos céus, não é apenas imensa. É a capital e a essência do império Tetrarca. E o império possui muitas masmorras, espalhadas conforme a graça e o desejo de quem quer que esteja sentado no Trono Branco. Desde quando o império surgiu, ficou estabelecida uma divisão de tarefas entre os membros da Tetrarquia. Para os habitantes da Torre Branca, a torre leste da Praça do Cristal, centro de poder da família Una, foi concedida a penosa honra de administrar os corpos e os bens do império. Enquanto os outros tetrarcas cuidam de frivolidades, como as conquistas e as fronteiras, a religião e a magia, ou mesmo a obscura ocupação da vigilância, o tetrarca da Torre Branca sabe que é dele que depende o amanhã. Garantir que as pessoas estejam alimentadas e os criminosos sejam punidos não permite experiências, como fazem os Venes ao procurar novas formas de aplicar os ensinamentos de Diros. Os couros do norte precisam chegar aos mineiros do oeste, assim como o milho do planalto precisa chegar no litoral, e tudo precisa chegar em Gigalópolis. Não é de se estranhar, portanto, que o chefe da família Una ainda mantenha a tradição de ter várias esposas e concubinas. São seus filhos que governam lealmente as incontáveis províncias no solo, os bairros e os pavilhões de Gigalópolis, com a precisão e o afinamento que coral nenhum, cantando seus hinos nos templos, poderia superar mesmo depois de uma vida inteira de ensaios.

A própria Torre Branca, a mais peculiar das quatro torres e uma maravilha da engenharia gigalopolita, foi projetada para deixar claro que ali estão as vísceras do império. Excluindo-se as colunas, as estruturas de apoio e as escadarias, as paredes da torre são feitas de enormes placas de alabastro perfeitamente encaixadas, com a brancura e a transparência fosca de um véu grosso. Quando o sol, a cidade, ou ambos se movem no céu e se colocam na posição certa, um observador atento pode ver fantasmas escuros se movimentando entre o traçado das vigas e colunas que retalham a Torre Branca como artérias. A genialidade do projeto não conseguiu, no entanto, evitar o que muitos na cidade acham um sinal de mau agouro ou, pelo menos, mau gosto. Quando a noite cai e as velas e candeeiros tremulam com o vento propício, a majestosa torre ganha uma aparência fúnebre, como um cadáver de veias escuras e vermes que se fazem ver por debaixo da pele. Um cadáver de cem metros de altura que apodrece todas as noites no coração do império.

Naquela noite, Odir não estava em seu quarto, nem nos aposentos de suas esposas ou concubinas. Não estaria no quarto de nenhum de seus filhos, pois não era de seu feitio niná-los. Odir era um homem prático, afiado por anos de intrigas e adversidades como tetrarca da Torre Branca, e poucas coisas eram capazes de interromper sua meticulosa rotina. Mas naquela noite, Odir teve um pesadelo.

Seu corpo pesado movia-se com espantosa liberdade no escuro. Os pés, acostumados com cada curva e degrau, dispensavam a vela. E a falta de luz garantia que nenhum habitante da Torre Branca despertaria por causa da sombra de seu patriarca projetada através da parede translúcida, perambulando no meio da madrugada. Os filhos e empregados certos foram acordados, as portas certas foram abertas por chaves escondidas e, tão breve quanto possível, Odir descia as escadas para o subterrâneo da Torre Branca, cavado na rocha sólida da montanha flutuante, onde nada era transparente, de onde nenhum som jamais escapara. Ali ficava a masmorra mais importante de todo o império. Havia boatos, é claro, sobre rituais bizarros nos subterrâneos da Torre Verde, e mesmo sobre uma intrincada rede de túneis que se estendiam como estradas por toda Gigalópolis para os espiões da Torre Negra. Mas nada era tão importante, ou tão secreto e bem guardado, quanto a masmorra nos subterrâneos da Torre Branca. Não havia boatos sobre ela, porque ali eram guardadas as pessoas que o resto do império queria esquecer. Pessoas que ameaçavam o amanhã próspero que Odir havia planejado. Essas pessoas sumiam, o resto do império dormia mais tranqüilo, e ninguém fazia perguntas.

A comitiva dos Unas desceu por escadas talhadas na pedra da montanha, grosseiras e úmidas. Os cheiros misturados de tochas, podridão e excrementos incomodavam alguns dos presentes, mas Odir caminhava por entre instrumentos de tortura e prisioneiros loucos balbuciando seus últimos fragmentos de sanidade com a mesma altivez, talvez mais, que mantinha durante seus afazeres diários na torre, ou em qualquer evento público.

Corpos cadavéricos reagiam à aproximação do Tetrarca, no limite que as correntes lhes permitiam. Alguns se prostravam, pedindo perdão ou uma morte rápida. Outros, reduzidos a animais amarrados, soltavam chiados e grunhidos sem palavras, apenas expressando ódio e medo. Os poucos soldados que se ocupavam de vigiar e atormentar os prisioneiros, sempre recrutados das regiões mais distantes do império, e sempre dados como mortos em alguma batalha, com honras, interrompiam suas atividades e ócios para se por em pé, olhando para o chão, enquanto o Tetrarca Branco passava. Caminhou pela longa galeria de horrores até chegar, por memória, a um par de correntes que descia das paredes e terminava num amontoado de feridas abertas e cabelos endurecidos por crostas de sujeira e sangue seco. Não era mais possível ver um homem ali. Quando muito um dedo, um umbigo ou um olho se definia no meio daquela moita de cabelos e pêlos, palha e restos de pano sujo.

Odir ficou parado diante daquilo. Espantou-se com a potência do elixir que a Torre Verde lhe preparou. O prisioneiro estava vivo apesar de tudo que lhe foi feito. E não contou nada útil, o que era mais espantoso ainda. Um risco de dúvida correu por sua espinha. Talvez fosse mesmo o homem errado.

Algo se mexeu no amontoado. Aquilo eram dentes? Uma risada fraca e entrecortada por tosse rompeu o silêncio.

“Você já sabe o que eu tenho a lhe dizer...” dizia uma voz vinda do meio arbusto de cabelos “... e sabe que eu não vou lhe dizer mais nada.”

“Nem se eu te libertar?”

“Você vai?”

“Não.”

Um silêncio pesado proibiu qualquer manifestação. Até mesmo os prisioneiros vizinhos olhavam com atenção.

“Então eu vou ter que me contentar com a lembrança dessa sua cara hipócrita de autoridade.”

“Não se afeiçoe à memória. Você não vai carregá-la muito tempo. A Torre Branca o considera culpado de alta traição e de quebra da Proibição. As circunstâncias agora indicam que você não é mais útil para a Tetrarquia. Portanto... Eu o condeno ao céu.”

A risada do prisioneiro se tornou uma gargalhada insana, ecoando em cada pedra, enquanto soldados silenciosos abriam as correntes e o arrastavam para o fim do corredor, onde uma escadaria parecia ser tragada pela escuridão. O homem mais jovem da comitiva interrompeu o espetáculo bizarro e perguntou “Qual é a sua vontade, meu pai?”.
Odir permaneceu imóvel, ouvindo os ecos distantes do prisioneiro, até que um som duro como o de uma porta aberta num tranco trouxe o silêncio de volta. Os guardas, e apenas eles, voltaram da escadaria.

“Encontrem... Galba.”

quinta-feira, 25 de novembro de 2010

Maré Escura - Parte 2

"Antes da Tetrarquia, antes mesmo de Gigalópolis, havia um mundo diferente do nosso. E ele está morto. Não há livros sobre este mundo, nem estátuas, nem sequer uma ruína. Tudo foi apagado, destruído, reescrito e refeito. Ele está ao nosso redor, mesmo agora, mas não podemos mais vê-lo. O que escapou das mãos dos homens foi consumido pelo tempo.

O tempo... Esta é uma história tão antiga que teríamos que reaprender a contar o tempo apenas para poder dizer quando ela aconteceu. Mas é antiga, isso é fato. Aconteceu antes do mundo que conhecemos nascer, e morreu antes da árvore que virou as tábuas do berço dos nossos bisavós ter germinado. Aconteceu e morreu, mas não nos deixou. É uma história tão terrível, tão cheia de segredos, que sua existência assombra nossos governantes como um fantasma inquieto. Foram eles que queimaram os papiros e destruiram as estátuas e os cemitérios e os templos, pintaram sobre os afrescos, estilhaçaram os vitrais e mataram quem se lembrava. Mas eles ainda sabem, os Tetrarcas, e por isso a história resiste. Ela não tem mais vida, mas tem uma alma. A história sabe que foi assassinada, e quer se vingar.

Antes de tudo o que conhecemos existir, o Monte da Pedra não era apenas um monte de topo plano, e sim uma montanha imponente. Seu pico ficava encoberto por núvens na maior parte do ano, e sua neve derretia nas estações quentes para escorrer num grande rio. No vale da montanha, bosques e animais bebiam deste rio, e quatro tribos estabeleceram ali sua morada, gozando das bençãos sob a sombra da rocha.

Eles viviam no chão, diferente de nós, e não cavavam suas casas na montanha. Plantavam e colhiam diretamente do solo, e nele criavam seus animais. Faziam suas ferramentas e armas apenas com a madeira, as pedras e o metal que o vale lhes dava. Havia pequenas guerras entre essas tribos, mas o tamanho e os motivos nos são hoje desconhecidos. Não importa. O fato é que as tribos existiram, e as quatro estavam aos pés da montanha, que hoje é o Monte da Pedra, nosso lugar mais sagrado, quando Diros apareceu durante um festival de casamento que reuniu as tribos, o que também era comum naquele tempo.

Sim, Diros, o iluminado, o patrono da noite, o primeiro feiticeiro. Durante a celebração, o povo das tribos viu um grande clarão vindo do norte. Os líderes das tribos ficaram preocupados com a cena e mandaram alguns caçadores ao local, esperando um incêndio no bosque.

Alguns dizem que ele veio do mar, outros do céu. Todos concordam que ele não era das tribos. Ele veio de algum outro lugar, não falava, não se vestia e nem parecia com os povos das quatro tribos. Diros, com sua túnica negra rasgada e seus adereços de prata, vestido como um pedaço do céu noturno que tivesse se despregado, estava terrivelmente ferido e as festividades foram interrompidas. Os caçadores o trouxeram carregado, pois estava febril e delirante. Os chefes das tribos, piedosos mas prudentes, resolveram cuidar do estranho e vigiá-lo. Suas feridas foram tratadas e em pouco tempo ele estava recobrado. Em poucas semanas, aprendeu a falar a língua das tribos. Em alguns meses, tomou para si alguns aprendizes e ensinou seus conhecimentos para quem quisesse ouvir, e sua feitiçaria para os que demonstraram talento. Diros viveu algum tempo entre as tribos, ajudando, aconselhando, fazendo-os florecer e dominar o mundo de formas que os povos das tribos jamais tinham sonhado. Mas Diros parecia sempre triste, perdido em memórias que ele não dividia.

Um dia, Diros convocou os chefes das tribos e lhes confessou que a escuridão viria e engoliria tudo. Ele havia fugido de sua antiga terra para escapar desse flagelo, mas os augúrios dos pássaros no céu, das folhas ao vento, das entranhas dos animais e dos sussurros dos mortos, todos deixavam claro que a escuridão viria, nada poderia detê-la. Diros sentou-se com seus melhores aprendizes, e por semanas a fio, sem descanso para mais do que um cochilo, um gole de água ou um naco de pão, planejaram como sobreviver à escuridão. Exaustos, abatidos e silenciosos, os feiticeiros e seu mestre sairam da cabana em silêncio, sussurraram algo aos chefes das tribos e marcharam para a montanha. Os chefes, com rostos apagados como se estivessem em seus próprios enterros, chamaram suas tribos e disseram, em uma só voz, que mundo deles morreria, mas o povo não. E ordenaram a todos que recolhessem comida e pertences para uma viagem, e que fizessem cordas, muitas cordas.

O trabalho ocupou muitos dias e ninguém ficou parado. Tudo foi guardado em arcas, potes, cestos e trouxas. Para estimular o desapego e mostrar confiança em Diros e em seus líderes, os povos das tribos lutavam contra a tristeza da morte iminente com grandes fogueiras alimentadas por suas mobílias e outras lembranças pesadas demais para se carregar.

A ansiedade e o medo da morte pareciam enlouquecer até mesmo as crianças e os animais. Ninguém tinha ânimo para dançar ou trabalhar. Quando as fogueiras apagaram e as casas estavam vazias, a vida parecia apenas ser feita da espera pelo fim da vida. Mas, numa noite em que a lua não apareceu, e todos se recolhiam assustados com suas famílias, orando para deuses esquecidos por clêmencia, um rugido explodiu no céu, luz e som numa intensidade impossível. O chão, revoltado, sacodiu derrubando árvores e cabanas. A montanha foi cindida por uma cicatriz de fogo azul e uma sinistra fumaça escura no meio da altura, e cuspia faixas de luz para o alto, que serpentavam como que tentando alcançar as estrelas. Pedras incandescentes foram arremessadas no vale destruindo tudo em seu caminho, cobrando o sangue necessário para o milagre que estava para acontecer. Centenas morreram em chamas, e outro tanto foi sepultado nos escombros de suas próprias moradias.

Os povos das tribos corriam como formigas, e o centro da montanha brilhava como um sol, azul e pulsante, de onde centenas de serpentes luminosas ascendia e riscavam o céu. A própria noite parou sua marcha por um instante, observando com atenção a morte daquele antigo mundo e o nascimento de outro. Então, uma segunda explosão de luz e som, como uma cavalgada de relâmpagos, cegou e ensurdeceu os povos das tribos. Quando alguns, pois para muitos a chaga seria permanente, recobraram os sentidos, o topo da montanha havia se partido do resto, e flutuava nos céus. Uma gigantesca carruagem de pedra, puxada para cima por serpentes de luz. Abaixo da pedra, um imenso sol azul pulsava e brilhava, e o último grito de Diros se vez ouvir de uma praia a outra do continente. Os braços de luz se recolheram e a bola de fogo azul se tornou uma imensa labareda, lambendo a rocha que pairava logo acima. A montanha tombou, estalou, rachou e soltou pedaços de suas bordas, até que virou completamente, com seu pico tocando o centro da luz. Diros, no centro fogo, em seu último gesto, tocou o topo da montanha - sua face ainda uma máscara de seriedade e tristeza. A neve do topo, agora invertido, caia e derretia com as chamas, tornando-se uma enxurrada, cavando sulcos na rocha e inundando o vale. O rio transbordou, e vagalhões invadiram até mesmo o terreno alto das casas importantes. O sol azul tremulou, afogado pelas águas, e enfraqueceu lentamente, até sumir. A noite voltou a respirar e continuou sua marcha. De Diros restava apenas uma sombra desenhada no chão, uma mancha queimada na rocha. A cicatriz e a marca de nascença deste mundo.

As tribos haviam morrido. Seu mundo todo fora consumido para criar a rocha flutuante. Uns punhados de gente, daqui e dali, por sorte ou astúcia, sairam de seus esconderijos e pegaram os mantimentos e cordas que haviam preparado. Três dos quatro chefes morrerram no cataclismo, mas seus parentes viveram e, investidos pela autoridade daquele sacrifício supremo, comandaram suas tribos para escalar a montanha partida. Do topo plano e liso da montanha na terra, atiraram suas flechas e seus ganchos, enroscaram suas cordas e subiram. Primeiro, os mais leves e ágeis. Depois, com amarras mais seguras, o resto dos sobreviventes, seus mantimentos, animais e as memórias de seus mortos. Os velhos e os incapazes para uma escalada tão íngreme, cairam, ou se jogaram, para se juntar aos sacrificados.

Cem pessoas, talvez duzentas, sobreviveram a tamanha provação e ocuparam o topo da ilha nos céus. No coração da ilha, um grande disco de cristal azul que custou todo o poder e as vidas de Diros e seus melhores aprendizes foi encontrado. Ao redor dele, agora ocupando uma fortaleza invencível, os sobreviventes, começaram a construir sua nova cidade. Os quatro chefes das tribos prometeram nunca mais guerrear entre si e governar como um. Um templo foi construído para guardar e proteger o cristal, pois como puderam perceber os feiticeiros que sobreviveram - mesmo sendo iniciantes - era a chave do milagre de Diros e o motivo da rocha continuar flutuando após sua morte. A magia combinada dos iniciantes fez pedra virar solo, e os céus trouxeram chuvas que empoçaram em lagos. Braços agradecidos pela sobrevivência e livres do medo da escuridão semearam o solo e trabalharam duro para cavar na pedra e fazer dela tudo quanto precisavam. Primeiro as casas, depois as quatro torres ao redor do Templo do Disco. A cidade cresceu e prosperou, sob o governo harmônico e sagaz dos quatro líderes.

E assim nasceu o monte da Pedra, com seu topo plano, sua marca escura bem no centro e o deserto Cinzento que o cerca.

E assim nasceu também a Cidade na Ilha dos Céus, Gigalópolis.

E assim nasceu a Tetrarquia..." Galba afastou novamente a barba e bebeu um longo gole, esvaziando o caneca. A expectativa no olhar da platéia encontrou o rosto do velho, agora apático e desinteressado, que se virou e voltou para sua mesa. O burburinho recomeçou, com pedaços de frases como “mas é só isso?” e “velho idiota” entrecortadas pela retomada das risadas, das grosserias e da normalidade.

Uma mão grossa e pesada agarrou um punhado de cabelos do jovem escravo. Ainda perdido em seus pensamentos sobre feiticeiros de terras distantes e a vinda da escuridão, teve o retorno para a realidade mais violento de toda platéia. Voltou a servir e limpar, mas não conseguia deixar de olhar, sempre que podia, para a mesa de Galba.

Aquele sorriso discreto e contente era enlouquecedor.

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Maré Escura - Parte 1

“É uma história das mais interessantes”, disse o longevo Galba, afastando sua longa barba num gesto pomposo, quase um ritual, para não molhá-la de cerveja conforme aproximava a caneca dos lábios. “Mas...”

Um silêncio pairou no salão. Homens maltrapilhos e sujos, amontoados como animais assustados, em grupos ao redor de robustas mesas voltaram sua atenção por um instante longo demais no velho. Julgando pelo seu sorriso matreiro, havia conseguido exatamente o que queria.

“Mas você não vai contá-la para nós porque não tem coragem de desobedecer a tetrarquia. Essa história foi proibida há anos.” Replicou um rosto sujo e anônimo, que se fundiu com balé de sombras provocado pelos candeeiros e voltou para o monte de gente de onde tinha levantado antes que algum traço de seu rosto pudesse ser memorizado.

“Duzentos e trinta e dois anos, para ser mais exato. E, no entanto, eu a conheço bem. Alguém tem mais de dois séculos e tanto de crimes para prestar contas à Tetrarquia, pois a história circula desde antes de mim. Já um pobre e velho contador de histórias como eu, de vista caduca e juntas doloridas, vi em minhas viagens histórias para três vidas inteiras, e minha maior preocupação nestes dias que me restam é que elas não morram comigo. Meu único crime, minha única covardia, seria não contar a história. Minha preocupação é outra, meu jovem” disse olhando genericamente para os montes escuros, enquanto fazia outra pausa para beber. “Minha preocupação é o que a história pode fazer convosco”.

“A história?” risadas nervosas irromperam, revelando dentes que já viram dias melhores. “A sua história não pode fazer nada pior do que a Tetrarquia, quando descobrirem.”

“A Tetrarquia não pode coisa alguma!” Galba agitou-se, seus olhos preenchidos por um brilho furioso. “Tirar-vos a vida? Seria apenas um atalho, já que morrer iremos todos. Impôr-vos torturas, fazer-vos de animais a implorar por clemência? Olhem em volta, meus amigos... O que é viver em Gigalópolis, senão a tortura e a humilhação? A gratidão pelas migalhas que caem dos pratos dourados dos Tetrarcas! O alívio de não ter vossos filhos e filhas levados para o Ritual da Pedra! Ficais congelados ao pensar na Guarda Branca, mas estais com medo da sombra de um cão raivoso que já vos morde todos os dias.”

A fúria abandonou o velho, que agora parecia frágil e desorientado. Palavras como “louco” e “caduco” podiam ser ouvidas aqui e ali, sobressaindo ao burburinho incompreensível dos montes humanos.

Foi quando o rapaz que servia as mesas, um escravo dado ainda criança ao taverneiro como pagamento por uma dívida num jogo de dados, limpou a cerveja derramada do chão, olhou Galba diretamente nos olhos e disse sua primeira frase completa em semanas “E o que você quer de nós então? Para contar a história...”

Galba se recompôs e olhou casualmente para o lado. Aquele mesmo sorriso voltou aos seus lábios. “Eu... derramei minha cerveja. Não posso contar uma história de garganta seca”.

O jovem escravo estendeu seus braços finos recolheu a caneca vazia. Trouxe-a de volta com o cuidade de quem carrega o cálice de reis.

“Bem...”
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domingo, 29 de agosto de 2010

Saudades do #$ da mãe.

Já que foi aberta uma imensa discussão sobre a propriedade das chacotas com (ou contra) candidatos, gostaríamos de lembrar o saudoso tempo da liberdade de expressão nas cédulas eleitorais.

Em 1988, o macaco Tião do zoológico do Rio de Janeiro repetiu o feito de Inês de Castro e foi, sem nunca ter sido, o terceiro candidato mais votado da cidade. Além do caso emblemático do símio, diversas combinações freudianas de partes do corpo (erógenas em sua maioria) com graus de parentesco faziam a festa da liberdade de expressão nas cédulas eleitorais em papel, até o inverno digital de 1996 banir do cenário político tão singelas manifestações. Em algum lugar, um anarquista fez um minuto de silêncio. Em vários outros, a maçonaria tecnocrática brindava com seus aliados Illuminatti e alienígenas (que forneceram a tecnologia das urnas) mais um golpe bem sucedido disfarçado de progresso.

Cidadão, humorista, homem de bem. Você que se revoltou com a mordaça humorística e passeatou até que a proibição fosse suspendida, lute agora pelo fim do teclado numérico nas urnas. Um tecladinho simples, de qualquer computador, nem precisa ser USB, e um ajuste mínimo no formulário de votação permitirá o retorno desse bastião da liberdade de expressão eleitoral.

Abaixo à ditadura digital nas urnas! Viva o/a (insira aqui um nome ou apelido de uma parte da anatomia humana constrangedora de se dizer na frente da sogra) do/a (insira aqui um parente qualquer).

sábado, 7 de agosto de 2010

Mascando

Havia algo em minha boca. No começo, achei que fosse um pedaço de comida, era pequeno e duro. Quando consegui prender entre os dentes e sentir com a língua, percebi que era sólido e quebradiço, como areia de praia.

Não, nunca comi propositalmente areia de praia só para saber qual era o gosto ou a sensação. Mas venta muito em praias, e crianças não são famosas pelo cuidado. Pelo contrário, saem correndo e gritando para fazer castelinhos de areia e pular ondas. Não creio que haja um ser humano sequer que tenha visitado uma praia na infância e não tenha mastigado o seu bocado de areia. É por isso que eu sei que parecia com areia. Qualquer um saberia.

Mas diferente da areia, que vai ficando mais fina e farinhenta conforme os dentes quebram os grãos, o que estava em minha boca aumentava em quantidade conforme eu mastigava. A mesma estranha sensação de estar quebrando algo cristalino e crocante, mas a sensação na língua era apenas de mais pedacinhos sólidos e irregulares.

Eu admito que foi estupidez minha. Eu devia ter aberto a boca e investigado visualmente o que era aquilo. Mas fiquei curioso. Como uma pessoa que cutuca uma ferida. Ela sabe que vai arder depois, mas no momento em que está cutucando, só quer saber o que está debaixo daquela casca. Eu só queria saber o que era aquilo que multiplicava quando deveria se quebrar em pedaços menores. E continuei mastigando e sentindo aquela massa de saliva e cristais quebradiços.

Continuei até sentir o gosto metálico do sangue. Cuspi numa pia branca, num banheiro branco, a mistura viscosa de saliva avermelhada, pontilhada de pequenos fragmentos brancos . Olhei para aquilo num silêncio tenso, até que as conclusões certas acharam seu caminho entre os neurônios para chegar até a consciência. Meus dentes. Abri a boca diante de um espelho num sorriso deformado para tentar enxergar meus dentes.

O reflexo se tornou um monstro de dentes trincados babando sangue.

domingo, 11 de julho de 2010

Comunicado Oficial

Certo, certo. O quarto foi arrumado. Os livros estão em ordem alfabética por sobrenome do autor. As roupas foram guardadas, os cobertores foram dobrados e o lençol, vejam que luxo, foi esticado. Deve durar uns três dias, então vamos aproveitar.

A copa acabou. As vuvuzelas que ainda resistiram hão de silenciar. O tiroteio eleitoral já começou. A mídia tem um novo escândalo pra latir. O cinema mostrou uma surpresa agradável (Esquadrão Classe A, não tirem conclusões precipitadas e evitem a todo custo fenômenos astronômicos). Aproximadamente 30 das últimas 72 horas foram gastas diante de um videogame besta mas nostálgico, supreendentemente viciante. As conversas com os amigos estão (quase) em dia, e houve tempo até para uma grande conclusão de uma etapa crucial num joguinho amistoso de RPG (sem perguntas, por favor).

Baterias recarregadas e casa arrumada. Agora é oficial: entramos no meio das férias. É hora de projetar o futuro.

E o futuro envolve, apesar de não estar limitado a, este humilde blógue.

Estamos pensando.

domingo, 10 de janeiro de 2010

Um ano novo.

Já nos foi dito, e por pessoa de peso, que não há revolução no ascenso social. Apenas a crise abre a possibilidade do questionamento das coisas como são.


Estamos descrentes disso. Não nos entenda mal. Não é questão de cuspir no prato que se comeu. É algo mais freudiano, como respeitosamente matar os próprios heróis.

Nossos índices de F.I.B. (Felicidade Interna Bruta) nunca foram tão altos. Há satisfação e sorrisos insistente por toda a parte por aqui. Somos uma nação feliz, como há muito não se via por aí.

O questionamento, talvez, seja coisa para momentos de crise. Mas a consciência não desaparece. As pessoas podem ser melhores, a vida pode ser melhor. Apesar de entendermos o quão assustador possa ser provocar mudanças em momentos de felicidade generalizada, nos parece algo covarde e incoerente, indigno da nossa gente.

São nesses momentos em que nada parece nos incomodar que temos o dever de canalizar as forças que sobram - transbordam, no nosso caso - e arregaçar as mangas para fazer toda aquela faxina que antes parecia impossível, porque todos nós chegávamos muito cansados do trabalho, e só queríamos sentar no sofá e ver comédias enlatadas (ainda que bem escritas).

É justamente agora, que a vida parece boa, que toda vida merece a chance de ser boa. Nada pode ser congelado. Nenhuma situação pode ser mantida indefinidamente (amem, pois seria enlouquecedor). Nenhuma felicidade justifica a inação. Apenas a covardia justifica a inação. Ouçam o rugido do leão e temam, pois homens felizes moram aqui.

Hora da faxina.