quinta-feira, 25 de novembro de 2010

Maré Escura - Parte 2

"Antes da Tetrarquia, antes mesmo de Gigalópolis, havia um mundo diferente do nosso. E ele está morto. Não há livros sobre este mundo, nem estátuas, nem sequer uma ruína. Tudo foi apagado, destruído, reescrito e refeito. Ele está ao nosso redor, mesmo agora, mas não podemos mais vê-lo. O que escapou das mãos dos homens foi consumido pelo tempo.

O tempo... Esta é uma história tão antiga que teríamos que reaprender a contar o tempo apenas para poder dizer quando ela aconteceu. Mas é antiga, isso é fato. Aconteceu antes do mundo que conhecemos nascer, e morreu antes da árvore que virou as tábuas do berço dos nossos bisavós ter germinado. Aconteceu e morreu, mas não nos deixou. É uma história tão terrível, tão cheia de segredos, que sua existência assombra nossos governantes como um fantasma inquieto. Foram eles que queimaram os papiros e destruiram as estátuas e os cemitérios e os templos, pintaram sobre os afrescos, estilhaçaram os vitrais e mataram quem se lembrava. Mas eles ainda sabem, os Tetrarcas, e por isso a história resiste. Ela não tem mais vida, mas tem uma alma. A história sabe que foi assassinada, e quer se vingar.

Antes de tudo o que conhecemos existir, o Monte da Pedra não era apenas um monte de topo plano, e sim uma montanha imponente. Seu pico ficava encoberto por núvens na maior parte do ano, e sua neve derretia nas estações quentes para escorrer num grande rio. No vale da montanha, bosques e animais bebiam deste rio, e quatro tribos estabeleceram ali sua morada, gozando das bençãos sob a sombra da rocha.

Eles viviam no chão, diferente de nós, e não cavavam suas casas na montanha. Plantavam e colhiam diretamente do solo, e nele criavam seus animais. Faziam suas ferramentas e armas apenas com a madeira, as pedras e o metal que o vale lhes dava. Havia pequenas guerras entre essas tribos, mas o tamanho e os motivos nos são hoje desconhecidos. Não importa. O fato é que as tribos existiram, e as quatro estavam aos pés da montanha, que hoje é o Monte da Pedra, nosso lugar mais sagrado, quando Diros apareceu durante um festival de casamento que reuniu as tribos, o que também era comum naquele tempo.

Sim, Diros, o iluminado, o patrono da noite, o primeiro feiticeiro. Durante a celebração, o povo das tribos viu um grande clarão vindo do norte. Os líderes das tribos ficaram preocupados com a cena e mandaram alguns caçadores ao local, esperando um incêndio no bosque.

Alguns dizem que ele veio do mar, outros do céu. Todos concordam que ele não era das tribos. Ele veio de algum outro lugar, não falava, não se vestia e nem parecia com os povos das quatro tribos. Diros, com sua túnica negra rasgada e seus adereços de prata, vestido como um pedaço do céu noturno que tivesse se despregado, estava terrivelmente ferido e as festividades foram interrompidas. Os caçadores o trouxeram carregado, pois estava febril e delirante. Os chefes das tribos, piedosos mas prudentes, resolveram cuidar do estranho e vigiá-lo. Suas feridas foram tratadas e em pouco tempo ele estava recobrado. Em poucas semanas, aprendeu a falar a língua das tribos. Em alguns meses, tomou para si alguns aprendizes e ensinou seus conhecimentos para quem quisesse ouvir, e sua feitiçaria para os que demonstraram talento. Diros viveu algum tempo entre as tribos, ajudando, aconselhando, fazendo-os florecer e dominar o mundo de formas que os povos das tribos jamais tinham sonhado. Mas Diros parecia sempre triste, perdido em memórias que ele não dividia.

Um dia, Diros convocou os chefes das tribos e lhes confessou que a escuridão viria e engoliria tudo. Ele havia fugido de sua antiga terra para escapar desse flagelo, mas os augúrios dos pássaros no céu, das folhas ao vento, das entranhas dos animais e dos sussurros dos mortos, todos deixavam claro que a escuridão viria, nada poderia detê-la. Diros sentou-se com seus melhores aprendizes, e por semanas a fio, sem descanso para mais do que um cochilo, um gole de água ou um naco de pão, planejaram como sobreviver à escuridão. Exaustos, abatidos e silenciosos, os feiticeiros e seu mestre sairam da cabana em silêncio, sussurraram algo aos chefes das tribos e marcharam para a montanha. Os chefes, com rostos apagados como se estivessem em seus próprios enterros, chamaram suas tribos e disseram, em uma só voz, que mundo deles morreria, mas o povo não. E ordenaram a todos que recolhessem comida e pertences para uma viagem, e que fizessem cordas, muitas cordas.

O trabalho ocupou muitos dias e ninguém ficou parado. Tudo foi guardado em arcas, potes, cestos e trouxas. Para estimular o desapego e mostrar confiança em Diros e em seus líderes, os povos das tribos lutavam contra a tristeza da morte iminente com grandes fogueiras alimentadas por suas mobílias e outras lembranças pesadas demais para se carregar.

A ansiedade e o medo da morte pareciam enlouquecer até mesmo as crianças e os animais. Ninguém tinha ânimo para dançar ou trabalhar. Quando as fogueiras apagaram e as casas estavam vazias, a vida parecia apenas ser feita da espera pelo fim da vida. Mas, numa noite em que a lua não apareceu, e todos se recolhiam assustados com suas famílias, orando para deuses esquecidos por clêmencia, um rugido explodiu no céu, luz e som numa intensidade impossível. O chão, revoltado, sacodiu derrubando árvores e cabanas. A montanha foi cindida por uma cicatriz de fogo azul e uma sinistra fumaça escura no meio da altura, e cuspia faixas de luz para o alto, que serpentavam como que tentando alcançar as estrelas. Pedras incandescentes foram arremessadas no vale destruindo tudo em seu caminho, cobrando o sangue necessário para o milagre que estava para acontecer. Centenas morreram em chamas, e outro tanto foi sepultado nos escombros de suas próprias moradias.

Os povos das tribos corriam como formigas, e o centro da montanha brilhava como um sol, azul e pulsante, de onde centenas de serpentes luminosas ascendia e riscavam o céu. A própria noite parou sua marcha por um instante, observando com atenção a morte daquele antigo mundo e o nascimento de outro. Então, uma segunda explosão de luz e som, como uma cavalgada de relâmpagos, cegou e ensurdeceu os povos das tribos. Quando alguns, pois para muitos a chaga seria permanente, recobraram os sentidos, o topo da montanha havia se partido do resto, e flutuava nos céus. Uma gigantesca carruagem de pedra, puxada para cima por serpentes de luz. Abaixo da pedra, um imenso sol azul pulsava e brilhava, e o último grito de Diros se vez ouvir de uma praia a outra do continente. Os braços de luz se recolheram e a bola de fogo azul se tornou uma imensa labareda, lambendo a rocha que pairava logo acima. A montanha tombou, estalou, rachou e soltou pedaços de suas bordas, até que virou completamente, com seu pico tocando o centro da luz. Diros, no centro fogo, em seu último gesto, tocou o topo da montanha - sua face ainda uma máscara de seriedade e tristeza. A neve do topo, agora invertido, caia e derretia com as chamas, tornando-se uma enxurrada, cavando sulcos na rocha e inundando o vale. O rio transbordou, e vagalhões invadiram até mesmo o terreno alto das casas importantes. O sol azul tremulou, afogado pelas águas, e enfraqueceu lentamente, até sumir. A noite voltou a respirar e continuou sua marcha. De Diros restava apenas uma sombra desenhada no chão, uma mancha queimada na rocha. A cicatriz e a marca de nascença deste mundo.

As tribos haviam morrido. Seu mundo todo fora consumido para criar a rocha flutuante. Uns punhados de gente, daqui e dali, por sorte ou astúcia, sairam de seus esconderijos e pegaram os mantimentos e cordas que haviam preparado. Três dos quatro chefes morrerram no cataclismo, mas seus parentes viveram e, investidos pela autoridade daquele sacrifício supremo, comandaram suas tribos para escalar a montanha partida. Do topo plano e liso da montanha na terra, atiraram suas flechas e seus ganchos, enroscaram suas cordas e subiram. Primeiro, os mais leves e ágeis. Depois, com amarras mais seguras, o resto dos sobreviventes, seus mantimentos, animais e as memórias de seus mortos. Os velhos e os incapazes para uma escalada tão íngreme, cairam, ou se jogaram, para se juntar aos sacrificados.

Cem pessoas, talvez duzentas, sobreviveram a tamanha provação e ocuparam o topo da ilha nos céus. No coração da ilha, um grande disco de cristal azul que custou todo o poder e as vidas de Diros e seus melhores aprendizes foi encontrado. Ao redor dele, agora ocupando uma fortaleza invencível, os sobreviventes, começaram a construir sua nova cidade. Os quatro chefes das tribos prometeram nunca mais guerrear entre si e governar como um. Um templo foi construído para guardar e proteger o cristal, pois como puderam perceber os feiticeiros que sobreviveram - mesmo sendo iniciantes - era a chave do milagre de Diros e o motivo da rocha continuar flutuando após sua morte. A magia combinada dos iniciantes fez pedra virar solo, e os céus trouxeram chuvas que empoçaram em lagos. Braços agradecidos pela sobrevivência e livres do medo da escuridão semearam o solo e trabalharam duro para cavar na pedra e fazer dela tudo quanto precisavam. Primeiro as casas, depois as quatro torres ao redor do Templo do Disco. A cidade cresceu e prosperou, sob o governo harmônico e sagaz dos quatro líderes.

E assim nasceu o monte da Pedra, com seu topo plano, sua marca escura bem no centro e o deserto Cinzento que o cerca.

E assim nasceu também a Cidade na Ilha dos Céus, Gigalópolis.

E assim nasceu a Tetrarquia..." Galba afastou novamente a barba e bebeu um longo gole, esvaziando o caneca. A expectativa no olhar da platéia encontrou o rosto do velho, agora apático e desinteressado, que se virou e voltou para sua mesa. O burburinho recomeçou, com pedaços de frases como “mas é só isso?” e “velho idiota” entrecortadas pela retomada das risadas, das grosserias e da normalidade.

Uma mão grossa e pesada agarrou um punhado de cabelos do jovem escravo. Ainda perdido em seus pensamentos sobre feiticeiros de terras distantes e a vinda da escuridão, teve o retorno para a realidade mais violento de toda platéia. Voltou a servir e limpar, mas não conseguia deixar de olhar, sempre que podia, para a mesa de Galba.

Aquele sorriso discreto e contente era enlouquecedor.

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Maré Escura - Parte 1

“É uma história das mais interessantes”, disse o longevo Galba, afastando sua longa barba num gesto pomposo, quase um ritual, para não molhá-la de cerveja conforme aproximava a caneca dos lábios. “Mas...”

Um silêncio pairou no salão. Homens maltrapilhos e sujos, amontoados como animais assustados, em grupos ao redor de robustas mesas voltaram sua atenção por um instante longo demais no velho. Julgando pelo seu sorriso matreiro, havia conseguido exatamente o que queria.

“Mas você não vai contá-la para nós porque não tem coragem de desobedecer a tetrarquia. Essa história foi proibida há anos.” Replicou um rosto sujo e anônimo, que se fundiu com balé de sombras provocado pelos candeeiros e voltou para o monte de gente de onde tinha levantado antes que algum traço de seu rosto pudesse ser memorizado.

“Duzentos e trinta e dois anos, para ser mais exato. E, no entanto, eu a conheço bem. Alguém tem mais de dois séculos e tanto de crimes para prestar contas à Tetrarquia, pois a história circula desde antes de mim. Já um pobre e velho contador de histórias como eu, de vista caduca e juntas doloridas, vi em minhas viagens histórias para três vidas inteiras, e minha maior preocupação nestes dias que me restam é que elas não morram comigo. Meu único crime, minha única covardia, seria não contar a história. Minha preocupação é outra, meu jovem” disse olhando genericamente para os montes escuros, enquanto fazia outra pausa para beber. “Minha preocupação é o que a história pode fazer convosco”.

“A história?” risadas nervosas irromperam, revelando dentes que já viram dias melhores. “A sua história não pode fazer nada pior do que a Tetrarquia, quando descobrirem.”

“A Tetrarquia não pode coisa alguma!” Galba agitou-se, seus olhos preenchidos por um brilho furioso. “Tirar-vos a vida? Seria apenas um atalho, já que morrer iremos todos. Impôr-vos torturas, fazer-vos de animais a implorar por clemência? Olhem em volta, meus amigos... O que é viver em Gigalópolis, senão a tortura e a humilhação? A gratidão pelas migalhas que caem dos pratos dourados dos Tetrarcas! O alívio de não ter vossos filhos e filhas levados para o Ritual da Pedra! Ficais congelados ao pensar na Guarda Branca, mas estais com medo da sombra de um cão raivoso que já vos morde todos os dias.”

A fúria abandonou o velho, que agora parecia frágil e desorientado. Palavras como “louco” e “caduco” podiam ser ouvidas aqui e ali, sobressaindo ao burburinho incompreensível dos montes humanos.

Foi quando o rapaz que servia as mesas, um escravo dado ainda criança ao taverneiro como pagamento por uma dívida num jogo de dados, limpou a cerveja derramada do chão, olhou Galba diretamente nos olhos e disse sua primeira frase completa em semanas “E o que você quer de nós então? Para contar a história...”

Galba se recompôs e olhou casualmente para o lado. Aquele mesmo sorriso voltou aos seus lábios. “Eu... derramei minha cerveja. Não posso contar uma história de garganta seca”.

O jovem escravo estendeu seus braços finos recolheu a caneca vazia. Trouxe-a de volta com o cuidade de quem carrega o cálice de reis.

“Bem...”
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