quinta-feira, 30 de dezembro de 2010

Maré escura - parte 4

“Eu não tenho um nome, e se tive não me lembro.” Para qualquer observador passando por aquelas ruas próximas à Praça do Cristal, o rapaz estava falando com uma das sacolas no riquixá que puxava.

“Sim, mas o taverneiro devia te chamar de alguma coisa...” respondeu a sacola, num tom discreto. O sol ainda não tinha raiado mas já não se viam mais estrelas, e o céu começava a adquirir aquele estranho tom lilás do amanhecer.

“Coisa... E também moleque, escravo, inútil, você. Dependia muito do humor dele.” Um comerciante acompanhado por um pequeno grupo de carregadores cruzou o caminho do jovem com o riquixá. Houve um silêncio, e o rapaz sem nome, que sempre teve perspicácia de sobra, respeitou a mudez de seu novo amo. Galba conversava com ele como se ele fosse gente, um comportamento que ele só esperava dos bêbados e da filha do taverneiro – mas a surra na manhã seguinte e as latrinas durante o resto do inverno garantiram que ele nunca mais pensasse em olhar para a moça. E além disso, ele era um rapaz curioso. Andar pela cidade carregando um velho contador de histórias que se esconde em sua bagagem era uma verdadeira aventura comparada com o resto da vida de escravo.

“Mas isso não pode continuar assim... Temos que lhe dar um nome. Do que eu vou lhe chamar?”

“Do que o senhor quiser, mesmo que eu tivesse um nome. Para isso você me comprou, não?”

Apesar de não haver mais ninguém ali naquele momento, a sacola fez outro silêncio. O jovem aproveitava para admirar a cidade, coisa que raramente podia fazer. Olhava para os telhados de palha e as paredes robustas das casas modestas, para exterior de mármore dos andares mais altos das casas ricas, as pedras quadradas pavimentando as ruas, o topo das quatro torres dominando o horizonte, as pessoas que passavam, os ratos entrando pelos escoadouros conforme ele se aproximava, e a cidade toda recobrando as cores com a luz do sol. Algum tempo depois, a sacola voltou a falar.

“Diga-me o que está vendo agora, e eu lhe darei isto como nome.”

“Peço que não senhor. Estava olhando agora mesmo para uma mancha enorme de bosta de pássaro.”

“Mm... justo. Seria trágico receber um nome a esta altura da vida e ser chamado de Bosta.” O jovem sorriu. Conseguia sorrir das pequenas graças da vida mesmo sendo um escravo. “Que tal palha?” respondeu.

“Não tão ruim quanto bosta, mas ainda é um nome fraco, não acha?”

“Um nome não torna ninguém fraco, senhor.”

“Ei, ei. Você é puxador de carroça, e eu sou o contador de histórias. E nas histórias, o nome é tão importante quanto os feitos. Como você espera que eu entre numa taverna e conte a história de quando eu fugi de Gigalópolis acompanhado de Palha, o puxador de carroças?”

O riquixá parou. Galba ajeitou o couro da sacola para poder olhar por um pequeno furo. “Armaduras”, disse o rapaz, diminuindo a força na voz, perdido entre o que via e o que tinha acabado de ouvir. “Eu vejo armaduras brancas, senhor.”
Um destacamento da guarda branca passava por ali. Seus enormes escudos de madeira clara formando uma parede, enquanto um oficial vinha à frente, gritando várias vezes a mesma mensagem “...seus idosos para um censo na Torre Branca. Ordens da Tetrarquia. Levem seus idosos...”. Os soldados das pontas das filas quebravam a formação para bater de porta em porta e apressar as pessoas. Ninguém entendia muito o motivo, mas estavam tão acostumados com os caprichos dos tetrarcas que se apressavam para cumprir a ordem. Pelo menos era melhor do que novos tributos.

O jovem escravo puxou o riquixá para perto de uma parede e esperou que a guarda passasse. Um dos guardas, estranhando o riquixá sem passageiros, perguntou-lhe onde estava o dono daquelas bagagens, cutucando-as com o cabo da lança.

“Vai descer para o solo. Me mandou buscar suas coisas na taverna e levar para o barcal.”

O guarda sabia que havia algo errado. Pessoas normais gaguejam e transpiram quando falam com autoridades justamente porque sabem que não estão escondendo nada, e que isso não fará a menor diferença se eles desagradarem a autoridade. Aquele garoto estava seguro demais da própria resposta. Era maltrapilho demais para ser um carregador contratado, portando devia ser um escravo.

“Bem, vá direto para lá então... Espero que seu amo não tenha cabelos brancos.”

O guarda deu mais um cutucão nas bagagens, a tropa passou e ele foi se juntar aos companheiros. O rapaz seguiu seu caminho, engolindo um nervosismo intenso que quase o fez chorar. Quando virou uma esquina e se viu numa rua deserta novamente, esbravejou “você vai matar nós dois!”

“Eu estou bem, obrigado por perguntar. Minha coxa já enfrentou pancadas piores... Dadas por mulheres inclusive. E se o perigo era tão grande, porque você não me entregou?” O rapaz ficou em silêncio. “Escute, tem um buraco aqui. Posso ver que a rua está vazia. Responda.”

“Eu não sei.”

“Você mentiu para a guarda branca e está levando um velho, aliás, o velho que eles estão procurando, para o barcal. Eu estou dentro de um saco e sou velho demais para qualquer combater até mesmo você. Por que você não me entregou?”

“Eu não sei, já disse que não sei. Eu só não quero voltar para lá.”

“Mm... Duras. É um bom nome.”

“O que?”

“Seu nome. Você viu armaduras. Não gosto de nomes grandes, e não acho que deva chamar você de Arma. Duras então. Você será Duras. Sem dúvida, tem uma cabeça dura, e oca, para mentir assim para a guarda branca.”

“Você está louco?”

“Por que? Prefere voltar ao bosta?”

Talvez tenha sido o nervoso. Talvez o velho soasse mesmo engraçado. Mas o jovem riu. Duras riu e continuou a puxar o riquixá.

A viagem continuou sem grandes surpresas. O jovem tentava se acostumar com a ideia do próprio nome, sempre distraído pelas pessoas que agora andavam em grande quantidade pelas ruas. Uma jóia aqui, uma senhora gorda ali, o cheiro das comidas nos tabuleiros dos vendedores. Gigalópolis era, sem surpresas, imensa. A religião do império, baseada nas obscuras profecias de Diros e um punhado de santos sábios que vieram depois dele, previam uma grande destruição com a chegada da maré escura, o que poderia acontecer a qualquer momento. E como a Cidade dos Céus foi o presente de Diros para salvar o povo, boa parte dos habitantes do império passava a vida tentando morar lá ou, pelo menos, garantir o envio dos filhos.

Tão logo a superfície da cidade estava ocupada, os melhores engenheiros da tetrarquia projetaram os pavilhões subterrâneos, e os trabalhadores se puseram a cavar. Três, no total. Metade desses pavilhões é ocupada por complexas redes de canos, bombas e reservatórios de água, fornalhas, caibros que transferem o movimento dos moinhos de vento para onde quer que se precise deste movimento, e os imensos terrários - as plantações cultivadas em imensas janelas cavadas nas laterais da rocha. A outra metade dos pavilhões tem gente. Muita gente. Muito mais do que se planejou e muito mais do que se pode gerenciar com a precisão que a Tetrarquia afirma governar. Um labirinto sem fim de corredores e cubículos, escadarias, túneis e salões, sempre escuros, sempre cheios de gente.

Mas assim como os exércitos que conquistaram o império precisavam descer, toda essa gente também precisava subir. No continente todo, apenas um lago é grande o bastante para que a cidade pouse sobre ele e permita que as pessoas subam e desçam em quantidade e sem perigos. O mar também é uma alternativa, mas a Tetrarquia raramente pousa a Cidade dos Céus, já que isto anula sua maior vantagem, a fortaleza inatacável.

Portanto, apesar do império ter começado sua expansão com os raros pousos de Gigalópolis, os habitantes da Torre Verde conceberam uma solução muito mais elegante e funcional. Através dos ensinamentos de Diros e das propriedades fantásticas do Cristal, os sábios do império descobriram como transferir parte do encantamento que faz a cidade voar para engenhosas embarcações, baseadas no conhecimento naval que haviam adquirido com os povos conquistados no litoral. O primeiro modelo construído, comprido e esguio, com seis velas de pano distribuídas em três pares nas laterais, foi batizado de libélula porque lembrava um inseto gigante com seis asas. Conforme o império cresceu, o número, a variedade e o tamanho dessas embarcações acompanhou o ritmo.

No extremo sul de Gigalópolis, um imenso banco de areia fina é usado para pousar as embarcações voadoras. Ali chegam e saem, todos os dias, produtos e pessoas das regiões mais distantes do império. O milho, o linho, os minérios, os trabalhadores e os escravos.

Foi nessa região, conhecida como barcal, que o jovem Duras chegou puxando um riquixá sem ninguém, apenas sacolas. Levantou a cabeça, como que tentando ouvir algo, e mudou de direção, entrando em um beco.

“A, com é bom esticar as pernas.” Galba ainda mancava, provavelmente por causa da lança do soldado. “A sacola verde, por favor.”

Duras ficou dividido entre ajudar seu novo amo e vigiar a rua. Mesmo daquela distância, podia ver grupos de homens idosos, todos com seus cabelos brancos, quando tinham algum, escoltados por soldados em direção à Praça do Cristal. Alguns pareciam revoltados, especialmente os mais ricos, a julgar pelas roupas e adereços. Mas a frieza dos guardas não abria concessões à posição social de ninguém.

“Quer me dizer como você pretende sair daqui? Nem mesmo os nobres estão passando pela guarda.”

“Eles estão procurando um velho... Talvez até já saibam que o velho tem um escravo.” Abriu a maleta e sacou dela uma garrafinha com um líquido oleoso e negro como a noite. “Agora me passe aquela navalha ali, meu sobrinho?”

segunda-feira, 6 de dezembro de 2010

Maré Escura - Parte 3

Em algum canto escuro de cada governo existe uma masmorra, porque as masmorras são um item necessário para quem governa. As vezes elas são sutis e não possuem nem mesmo paredes, mas elas têm que existir. É preciso guardar aqueles que enxergam os defeitos do mundo em algum lugar seguro.

Gigalópolis, a cidade dos céus, não é apenas imensa. É a capital e a essência do império Tetrarca. E o império possui muitas masmorras, espalhadas conforme a graça e o desejo de quem quer que esteja sentado no Trono Branco. Desde quando o império surgiu, ficou estabelecida uma divisão de tarefas entre os membros da Tetrarquia. Para os habitantes da Torre Branca, a torre leste da Praça do Cristal, centro de poder da família Una, foi concedida a penosa honra de administrar os corpos e os bens do império. Enquanto os outros tetrarcas cuidam de frivolidades, como as conquistas e as fronteiras, a religião e a magia, ou mesmo a obscura ocupação da vigilância, o tetrarca da Torre Branca sabe que é dele que depende o amanhã. Garantir que as pessoas estejam alimentadas e os criminosos sejam punidos não permite experiências, como fazem os Venes ao procurar novas formas de aplicar os ensinamentos de Diros. Os couros do norte precisam chegar aos mineiros do oeste, assim como o milho do planalto precisa chegar no litoral, e tudo precisa chegar em Gigalópolis. Não é de se estranhar, portanto, que o chefe da família Una ainda mantenha a tradição de ter várias esposas e concubinas. São seus filhos que governam lealmente as incontáveis províncias no solo, os bairros e os pavilhões de Gigalópolis, com a precisão e o afinamento que coral nenhum, cantando seus hinos nos templos, poderia superar mesmo depois de uma vida inteira de ensaios.

A própria Torre Branca, a mais peculiar das quatro torres e uma maravilha da engenharia gigalopolita, foi projetada para deixar claro que ali estão as vísceras do império. Excluindo-se as colunas, as estruturas de apoio e as escadarias, as paredes da torre são feitas de enormes placas de alabastro perfeitamente encaixadas, com a brancura e a transparência fosca de um véu grosso. Quando o sol, a cidade, ou ambos se movem no céu e se colocam na posição certa, um observador atento pode ver fantasmas escuros se movimentando entre o traçado das vigas e colunas que retalham a Torre Branca como artérias. A genialidade do projeto não conseguiu, no entanto, evitar o que muitos na cidade acham um sinal de mau agouro ou, pelo menos, mau gosto. Quando a noite cai e as velas e candeeiros tremulam com o vento propício, a majestosa torre ganha uma aparência fúnebre, como um cadáver de veias escuras e vermes que se fazem ver por debaixo da pele. Um cadáver de cem metros de altura que apodrece todas as noites no coração do império.

Naquela noite, Odir não estava em seu quarto, nem nos aposentos de suas esposas ou concubinas. Não estaria no quarto de nenhum de seus filhos, pois não era de seu feitio niná-los. Odir era um homem prático, afiado por anos de intrigas e adversidades como tetrarca da Torre Branca, e poucas coisas eram capazes de interromper sua meticulosa rotina. Mas naquela noite, Odir teve um pesadelo.

Seu corpo pesado movia-se com espantosa liberdade no escuro. Os pés, acostumados com cada curva e degrau, dispensavam a vela. E a falta de luz garantia que nenhum habitante da Torre Branca despertaria por causa da sombra de seu patriarca projetada através da parede translúcida, perambulando no meio da madrugada. Os filhos e empregados certos foram acordados, as portas certas foram abertas por chaves escondidas e, tão breve quanto possível, Odir descia as escadas para o subterrâneo da Torre Branca, cavado na rocha sólida da montanha flutuante, onde nada era transparente, de onde nenhum som jamais escapara. Ali ficava a masmorra mais importante de todo o império. Havia boatos, é claro, sobre rituais bizarros nos subterrâneos da Torre Verde, e mesmo sobre uma intrincada rede de túneis que se estendiam como estradas por toda Gigalópolis para os espiões da Torre Negra. Mas nada era tão importante, ou tão secreto e bem guardado, quanto a masmorra nos subterrâneos da Torre Branca. Não havia boatos sobre ela, porque ali eram guardadas as pessoas que o resto do império queria esquecer. Pessoas que ameaçavam o amanhã próspero que Odir havia planejado. Essas pessoas sumiam, o resto do império dormia mais tranqüilo, e ninguém fazia perguntas.

A comitiva dos Unas desceu por escadas talhadas na pedra da montanha, grosseiras e úmidas. Os cheiros misturados de tochas, podridão e excrementos incomodavam alguns dos presentes, mas Odir caminhava por entre instrumentos de tortura e prisioneiros loucos balbuciando seus últimos fragmentos de sanidade com a mesma altivez, talvez mais, que mantinha durante seus afazeres diários na torre, ou em qualquer evento público.

Corpos cadavéricos reagiam à aproximação do Tetrarca, no limite que as correntes lhes permitiam. Alguns se prostravam, pedindo perdão ou uma morte rápida. Outros, reduzidos a animais amarrados, soltavam chiados e grunhidos sem palavras, apenas expressando ódio e medo. Os poucos soldados que se ocupavam de vigiar e atormentar os prisioneiros, sempre recrutados das regiões mais distantes do império, e sempre dados como mortos em alguma batalha, com honras, interrompiam suas atividades e ócios para se por em pé, olhando para o chão, enquanto o Tetrarca Branco passava. Caminhou pela longa galeria de horrores até chegar, por memória, a um par de correntes que descia das paredes e terminava num amontoado de feridas abertas e cabelos endurecidos por crostas de sujeira e sangue seco. Não era mais possível ver um homem ali. Quando muito um dedo, um umbigo ou um olho se definia no meio daquela moita de cabelos e pêlos, palha e restos de pano sujo.

Odir ficou parado diante daquilo. Espantou-se com a potência do elixir que a Torre Verde lhe preparou. O prisioneiro estava vivo apesar de tudo que lhe foi feito. E não contou nada útil, o que era mais espantoso ainda. Um risco de dúvida correu por sua espinha. Talvez fosse mesmo o homem errado.

Algo se mexeu no amontoado. Aquilo eram dentes? Uma risada fraca e entrecortada por tosse rompeu o silêncio.

“Você já sabe o que eu tenho a lhe dizer...” dizia uma voz vinda do meio arbusto de cabelos “... e sabe que eu não vou lhe dizer mais nada.”

“Nem se eu te libertar?”

“Você vai?”

“Não.”

Um silêncio pesado proibiu qualquer manifestação. Até mesmo os prisioneiros vizinhos olhavam com atenção.

“Então eu vou ter que me contentar com a lembrança dessa sua cara hipócrita de autoridade.”

“Não se afeiçoe à memória. Você não vai carregá-la muito tempo. A Torre Branca o considera culpado de alta traição e de quebra da Proibição. As circunstâncias agora indicam que você não é mais útil para a Tetrarquia. Portanto... Eu o condeno ao céu.”

A risada do prisioneiro se tornou uma gargalhada insana, ecoando em cada pedra, enquanto soldados silenciosos abriam as correntes e o arrastavam para o fim do corredor, onde uma escadaria parecia ser tragada pela escuridão. O homem mais jovem da comitiva interrompeu o espetáculo bizarro e perguntou “Qual é a sua vontade, meu pai?”.
Odir permaneceu imóvel, ouvindo os ecos distantes do prisioneiro, até que um som duro como o de uma porta aberta num tranco trouxe o silêncio de volta. Os guardas, e apenas eles, voltaram da escadaria.

“Encontrem... Galba.”