quinta-feira, 25 de novembro de 2010

Maré Escura - Parte 1

“É uma história das mais interessantes”, disse o longevo Galba, afastando sua longa barba num gesto pomposo, quase um ritual, para não molhá-la de cerveja conforme aproximava a caneca dos lábios. “Mas...”

Um silêncio pairou no salão. Homens maltrapilhos e sujos, amontoados como animais assustados, em grupos ao redor de robustas mesas voltaram sua atenção por um instante longo demais no velho. Julgando pelo seu sorriso matreiro, havia conseguido exatamente o que queria.

“Mas você não vai contá-la para nós porque não tem coragem de desobedecer a tetrarquia. Essa história foi proibida há anos.” Replicou um rosto sujo e anônimo, que se fundiu com balé de sombras provocado pelos candeeiros e voltou para o monte de gente de onde tinha levantado antes que algum traço de seu rosto pudesse ser memorizado.

“Duzentos e trinta e dois anos, para ser mais exato. E, no entanto, eu a conheço bem. Alguém tem mais de dois séculos e tanto de crimes para prestar contas à Tetrarquia, pois a história circula desde antes de mim. Já um pobre e velho contador de histórias como eu, de vista caduca e juntas doloridas, vi em minhas viagens histórias para três vidas inteiras, e minha maior preocupação nestes dias que me restam é que elas não morram comigo. Meu único crime, minha única covardia, seria não contar a história. Minha preocupação é outra, meu jovem” disse olhando genericamente para os montes escuros, enquanto fazia outra pausa para beber. “Minha preocupação é o que a história pode fazer convosco”.

“A história?” risadas nervosas irromperam, revelando dentes que já viram dias melhores. “A sua história não pode fazer nada pior do que a Tetrarquia, quando descobrirem.”

“A Tetrarquia não pode coisa alguma!” Galba agitou-se, seus olhos preenchidos por um brilho furioso. “Tirar-vos a vida? Seria apenas um atalho, já que morrer iremos todos. Impôr-vos torturas, fazer-vos de animais a implorar por clemência? Olhem em volta, meus amigos... O que é viver em Gigalópolis, senão a tortura e a humilhação? A gratidão pelas migalhas que caem dos pratos dourados dos Tetrarcas! O alívio de não ter vossos filhos e filhas levados para o Ritual da Pedra! Ficais congelados ao pensar na Guarda Branca, mas estais com medo da sombra de um cão raivoso que já vos morde todos os dias.”

A fúria abandonou o velho, que agora parecia frágil e desorientado. Palavras como “louco” e “caduco” podiam ser ouvidas aqui e ali, sobressaindo ao burburinho incompreensível dos montes humanos.

Foi quando o rapaz que servia as mesas, um escravo dado ainda criança ao taverneiro como pagamento por uma dívida num jogo de dados, limpou a cerveja derramada do chão, olhou Galba diretamente nos olhos e disse sua primeira frase completa em semanas “E o que você quer de nós então? Para contar a história...”

Galba se recompôs e olhou casualmente para o lado. Aquele mesmo sorriso voltou aos seus lábios. “Eu... derramei minha cerveja. Não posso contar uma história de garganta seca”.

O jovem escravo estendeu seus braços finos recolheu a caneca vazia. Trouxe-a de volta com o cuidade de quem carrega o cálice de reis.

“Bem...”
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