segunda-feira, 6 de dezembro de 2010

Maré Escura - Parte 3

Em algum canto escuro de cada governo existe uma masmorra, porque as masmorras são um item necessário para quem governa. As vezes elas são sutis e não possuem nem mesmo paredes, mas elas têm que existir. É preciso guardar aqueles que enxergam os defeitos do mundo em algum lugar seguro.

Gigalópolis, a cidade dos céus, não é apenas imensa. É a capital e a essência do império Tetrarca. E o império possui muitas masmorras, espalhadas conforme a graça e o desejo de quem quer que esteja sentado no Trono Branco. Desde quando o império surgiu, ficou estabelecida uma divisão de tarefas entre os membros da Tetrarquia. Para os habitantes da Torre Branca, a torre leste da Praça do Cristal, centro de poder da família Una, foi concedida a penosa honra de administrar os corpos e os bens do império. Enquanto os outros tetrarcas cuidam de frivolidades, como as conquistas e as fronteiras, a religião e a magia, ou mesmo a obscura ocupação da vigilância, o tetrarca da Torre Branca sabe que é dele que depende o amanhã. Garantir que as pessoas estejam alimentadas e os criminosos sejam punidos não permite experiências, como fazem os Venes ao procurar novas formas de aplicar os ensinamentos de Diros. Os couros do norte precisam chegar aos mineiros do oeste, assim como o milho do planalto precisa chegar no litoral, e tudo precisa chegar em Gigalópolis. Não é de se estranhar, portanto, que o chefe da família Una ainda mantenha a tradição de ter várias esposas e concubinas. São seus filhos que governam lealmente as incontáveis províncias no solo, os bairros e os pavilhões de Gigalópolis, com a precisão e o afinamento que coral nenhum, cantando seus hinos nos templos, poderia superar mesmo depois de uma vida inteira de ensaios.

A própria Torre Branca, a mais peculiar das quatro torres e uma maravilha da engenharia gigalopolita, foi projetada para deixar claro que ali estão as vísceras do império. Excluindo-se as colunas, as estruturas de apoio e as escadarias, as paredes da torre são feitas de enormes placas de alabastro perfeitamente encaixadas, com a brancura e a transparência fosca de um véu grosso. Quando o sol, a cidade, ou ambos se movem no céu e se colocam na posição certa, um observador atento pode ver fantasmas escuros se movimentando entre o traçado das vigas e colunas que retalham a Torre Branca como artérias. A genialidade do projeto não conseguiu, no entanto, evitar o que muitos na cidade acham um sinal de mau agouro ou, pelo menos, mau gosto. Quando a noite cai e as velas e candeeiros tremulam com o vento propício, a majestosa torre ganha uma aparência fúnebre, como um cadáver de veias escuras e vermes que se fazem ver por debaixo da pele. Um cadáver de cem metros de altura que apodrece todas as noites no coração do império.

Naquela noite, Odir não estava em seu quarto, nem nos aposentos de suas esposas ou concubinas. Não estaria no quarto de nenhum de seus filhos, pois não era de seu feitio niná-los. Odir era um homem prático, afiado por anos de intrigas e adversidades como tetrarca da Torre Branca, e poucas coisas eram capazes de interromper sua meticulosa rotina. Mas naquela noite, Odir teve um pesadelo.

Seu corpo pesado movia-se com espantosa liberdade no escuro. Os pés, acostumados com cada curva e degrau, dispensavam a vela. E a falta de luz garantia que nenhum habitante da Torre Branca despertaria por causa da sombra de seu patriarca projetada através da parede translúcida, perambulando no meio da madrugada. Os filhos e empregados certos foram acordados, as portas certas foram abertas por chaves escondidas e, tão breve quanto possível, Odir descia as escadas para o subterrâneo da Torre Branca, cavado na rocha sólida da montanha flutuante, onde nada era transparente, de onde nenhum som jamais escapara. Ali ficava a masmorra mais importante de todo o império. Havia boatos, é claro, sobre rituais bizarros nos subterrâneos da Torre Verde, e mesmo sobre uma intrincada rede de túneis que se estendiam como estradas por toda Gigalópolis para os espiões da Torre Negra. Mas nada era tão importante, ou tão secreto e bem guardado, quanto a masmorra nos subterrâneos da Torre Branca. Não havia boatos sobre ela, porque ali eram guardadas as pessoas que o resto do império queria esquecer. Pessoas que ameaçavam o amanhã próspero que Odir havia planejado. Essas pessoas sumiam, o resto do império dormia mais tranqüilo, e ninguém fazia perguntas.

A comitiva dos Unas desceu por escadas talhadas na pedra da montanha, grosseiras e úmidas. Os cheiros misturados de tochas, podridão e excrementos incomodavam alguns dos presentes, mas Odir caminhava por entre instrumentos de tortura e prisioneiros loucos balbuciando seus últimos fragmentos de sanidade com a mesma altivez, talvez mais, que mantinha durante seus afazeres diários na torre, ou em qualquer evento público.

Corpos cadavéricos reagiam à aproximação do Tetrarca, no limite que as correntes lhes permitiam. Alguns se prostravam, pedindo perdão ou uma morte rápida. Outros, reduzidos a animais amarrados, soltavam chiados e grunhidos sem palavras, apenas expressando ódio e medo. Os poucos soldados que se ocupavam de vigiar e atormentar os prisioneiros, sempre recrutados das regiões mais distantes do império, e sempre dados como mortos em alguma batalha, com honras, interrompiam suas atividades e ócios para se por em pé, olhando para o chão, enquanto o Tetrarca Branco passava. Caminhou pela longa galeria de horrores até chegar, por memória, a um par de correntes que descia das paredes e terminava num amontoado de feridas abertas e cabelos endurecidos por crostas de sujeira e sangue seco. Não era mais possível ver um homem ali. Quando muito um dedo, um umbigo ou um olho se definia no meio daquela moita de cabelos e pêlos, palha e restos de pano sujo.

Odir ficou parado diante daquilo. Espantou-se com a potência do elixir que a Torre Verde lhe preparou. O prisioneiro estava vivo apesar de tudo que lhe foi feito. E não contou nada útil, o que era mais espantoso ainda. Um risco de dúvida correu por sua espinha. Talvez fosse mesmo o homem errado.

Algo se mexeu no amontoado. Aquilo eram dentes? Uma risada fraca e entrecortada por tosse rompeu o silêncio.

“Você já sabe o que eu tenho a lhe dizer...” dizia uma voz vinda do meio arbusto de cabelos “... e sabe que eu não vou lhe dizer mais nada.”

“Nem se eu te libertar?”

“Você vai?”

“Não.”

Um silêncio pesado proibiu qualquer manifestação. Até mesmo os prisioneiros vizinhos olhavam com atenção.

“Então eu vou ter que me contentar com a lembrança dessa sua cara hipócrita de autoridade.”

“Não se afeiçoe à memória. Você não vai carregá-la muito tempo. A Torre Branca o considera culpado de alta traição e de quebra da Proibição. As circunstâncias agora indicam que você não é mais útil para a Tetrarquia. Portanto... Eu o condeno ao céu.”

A risada do prisioneiro se tornou uma gargalhada insana, ecoando em cada pedra, enquanto soldados silenciosos abriam as correntes e o arrastavam para o fim do corredor, onde uma escadaria parecia ser tragada pela escuridão. O homem mais jovem da comitiva interrompeu o espetáculo bizarro e perguntou “Qual é a sua vontade, meu pai?”.
Odir permaneceu imóvel, ouvindo os ecos distantes do prisioneiro, até que um som duro como o de uma porta aberta num tranco trouxe o silêncio de volta. Os guardas, e apenas eles, voltaram da escadaria.

“Encontrem... Galba.”

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