quinta-feira, 16 de julho de 2009

Apologia a Sauron

Acho que finalmente entendi Tolkien, e entendi enquanto cagava. Não que o local ou o ato em si tenham motivado a epifania, longe disso. Mas foi o momento de parada forçada que fiz durante uma crise. Percebi que havia perdido um livro e estava louco atrás dele, até que o chamado da natureza me obrigou a ir ao vaso.

Até algumas horas atrás, o livro não era mais importante do que qualquer outro da minha coleção. Ele não era o mais caro, nem o mais bonito, nem o mais inteligente. O próprio autor do livro perdido já escrevera coisa melhor. E minha coleção, por sua vez, apesar do meu carinho por ela, não é impressionante. Duvido que ela um dia salve a vida de alguém.

Mas, bem sabe quem trabalha com informações, você guarda livros durante uma vida toda, lê alguns, agenda outros para uma leitura futura, que nunca chega, e um dia, por causa de uma idéia maluca que vai tirar o seu trabalho corriqueiro do marasmo e jogá-lo em outro nível – que envolve, no mínimo, elogios e tapinhas nas costas – você precisa reler uma idéia que, salvo falha de memória, estava em algum livro seu. E aquele maldito livro deixa de ser só mais um anteparo de poeira, e se torna “o um” livro.

Começa tranqüilo, como a primeira chama de um incêndio. Você checa primeiro os lugares onde ele deveria estar, e fica levemente incomodado. Depois os lugares onde você costuma deixar livros, como o chão ao lado da cama ou a escrivaninha. Então a fria realidade alcança os seus sentidos. Você parte para as outras coleções de livros presentes na casa, e num último desespero passa a olhar qualquer gaveta grande o bastante para contê-lo. Tudo inútil. O um livro não está lá.

Você cria pilhas enormes de bagunça e destruição atrás dele, arregimenta quem estiver por perto na procura por ele. Você visita lugares em que já esteve, na esperança de ter deixado passar alguma coisa, e arrasta a mobília na esperança de que ele tenha caído inocentemente atrás de uma estante qualquer – sabendo no fundo da alma que vai se vingar da tal estante depois que achar o livro e passar o nervosismo, transformando-a num apoio para copos e cinzeiros pelo resto da eternidade.

O maldito livro não aparece. A idéia genial vai ter que esperar o livro brotar do nada, ou uma visita nada gloriosa até a livraria mais próxima, para a compra de um livro que você sabe que já tem. Só de imaginar a cara inocente e solícita do vendedor, o sangue ferve o bastante para estripar alguém. Mas até a expressão bovina do vendedor é melhor do que estar sem o livro, porque isso significa mais um trabalho médio, e o médio é perturbador.

Como você é uma pessoa racional, canaliza essa raiva para uma segunda busca ao livro perdido. Só que, em algum lugar bizarro do seu inconsciente, você já cedeu e está se culpando por ser desorganizado. E começa a arrumar seus livros, por impulso, para que eles sempre estejam ao alcance da mão quando você precisar deles – o que é louvável, exceto por não resolver o problema fundamental: o um livro não está lá, mesmo depois da minuciosa cata de outros livros espalhados pela casa, alfabeticamente devolvidos aos seus lugares de direito.

Foi nesse estágio que a inevitabilidade se manifestou do jeito que só as tripas sabem fazer. Fui ao banheiro e, sem muita explicação, me peguei sentindo piedade do Sauron. E entendi que os vilões eram aqueles gordos de um metro e vinte, escondendo o um livro, digo, anel, com todas as forças, para evitar algo que seguramente era melhor do que aquela vidinha insuportavelmente média e constante.

Mas eu vi os filmes, e não tenho a menor vocação para vilão de segunda, que sempre se despede da vida com um "eu cheguei tão perto" nos lábios, preferencialmente com um espetáculo de efeitos especias. Eu sei no que dá esse tipo de braço de ferro. Minha conclusão honesta? Que se danem esses malucos faladores de língua élfica. Se Sauron tivesse parado para cagar no meio daquela confusão toda, teria ido à joalheria no dia seguinte.

3 comentários:

  1. Se você manter a inspiração poética a cada cagada poderá ser o novo prêmio Nobel de literatura!

    Boa sorte!!

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  2. Complementando sua inversão da relação protagonista-antagonista na obra tolikienina, me parece que vc freudianamente ignora as óbvias relações alegoricas que podem ser estabelecidas entre o ato de cagar e o anel de Sauron. Como ele poderia cagar sem o anel?! Só quem já teve prisão de ventre pode compartilhar o ódio que Sauron deve ter tido das tais anões obesos.

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